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11 agosto 2006

Noticia.....Advogados, investigadores e educadores avaliam o impacto de séries televisivas populares sobre a ciência forense

Edição Nº 51 - agosto de 2006 www.sciam.com.br

A realidade do CSI


A ciência forense sempre foi a espinha dorsal de contos de mistério, desde as aventuras de Dupin, de Edgar Allan Poe, até as histórias de Sherlock Holmes, de sir Arthur Conan Doyle, da série televisiva Quincy, de Jack Klugman, até os atuais programas de investigação criminal de grande sucesso. Os métodos de Holmes precederam muitas técnicas verdadeiras usadas para ligar uma prova física a um criminoso, como exame de sangue. Tornou-se profissão legalizada no começo do século XX e explodiu para o grande público na década de 90 com o advento da análise de DNA.

A ciência forense nunca foi tão popular: oito séries criminais, entre elas CSI: Crime Scene Investigation e outras do mesmo gênero estão na lista dos 20 programas mais vistos em outubro de 2005. Em uma quinta-feira desse mês, 27% de todos os televisores dos Estados Unidos estavam sintonizados no CSI. Programas desse tipo dão a impressão de que os laboratórios criminais estão bem equipados com técnicos altamente treinados e tecnologia de ponta à disposição, nadando em recursos para solucionar qualquer caso em tempo hábil.

Contudo, o abismo que há entre a percepção do público e a realidade é enorme. Com a popularidade desses programas, muitos vêm reclamando do que está sendo chamado de "efeito CSI". Alguns advogados e juízes têm a impressão de que os jurados que assistem ao seriado - no ar desde 2000 - agora exigem níveis nada razoáveis de provas físicas nos julgamentos.

O boom de séries que abordam a ciência forense foi ironicamente citado até mesmo dentro de um dos episódios de CSI, no qual uma equipe de televisão acompanhava as atividades dos investigadores fictícios. O líder, Gil Grisson, rejeitou a presença do grupo com a alegação de que havia "programas demais de investigação criminal na TV". Muitos advogados e juízes que acreditam que os jurados são influenciados pelo efeito CSI concordariam. Até que ponto isso é verdade?
A imprensa começou a dar atenção a esse problema em 2003, quando colheu histórias sobre o que parecia ser uma mudança no comportamento do júri. Em 2005, o promotor público de Oregon, Josh Marquis, vice-presidente da Associação Nacional de Promotores Públicos, disse ao noticiário CBS News: "Os jurados agora esperam que nós tenhamos testes de DNA para quase todos os casos. Eles esperam que tenhamos a mais avançada tecnologia possível e esperam que tudo isso seja igual ao que assistem na TV". De fato, os jurados de um caso de assassinato em Los Angeles reclamavam que um casaco sujo de sangue não havia passado por exame de DNA, mesmo sendo esse procedimento desnecessário para o caso: o acusado já havia confessado que estivera no local do crime. O juiz notou que os jurados aprenderam sobre exames de DNA pela TV, mas não em que casos deveriam ser usados.

Advogados culparam o "efeito CSI" quando um júri de Baltimore absolveu um homem da acusação de assassinato - as declarações de duas testemunhas oculares foram ignoradas por falta de prova física. "Venho percebendo uma grande mudança nos jurados e no que eles esperam dos julgamentos nos últimos cinco anos", disse o advogado de defesa Joseph Levin, de Atlantic City, Nova Jersey, a um jornal local. "Os jurados podem fazer perguntas ao juiz durante as deliberações, e suas questões são sobre o que acreditam ser ausência de prova. Querem saber onde estão as digitais ou o exame de DNA. Se não há esse tipo prova, querem saber por quê." Na Califórnia, no julgamento do ator Robert Blake por assassinato, os promotores tentaram persuadir o júri estabelecendo o motivo e a oportunidade de Blake e apresentaram testemunhas que afirmavam que ele lhes pediu que assassinassem sua esposa. Mas não foram apresentadas provas como resíduos de tiro ou marcas de sangue, e Blake acabou sendo absolvido. Um jurado chegou a dizer que se o promotor tivesse apresentado todas essas informações, a culpa de Blake teria sido estabelecida. Essa foi sua primeira derrota depois de 50 casos de assassinato.

Antes de CSI tornar-se popular, os advogados se preocupavam principalmente se um júri entenderia ou não a complexidade do exame de DNA. Mas agora muitos perdem tempo explicando a diferença entre televisão e realidade - é comum os advogados perguntarem aos candidatos ao júri sobre sua exposição a programas forenses na TV. Alguns promotores tentam se prevenir de qualquer possível conseqüência provocada pelo efeito CSI. Em julgamentos nos estados do Arizona, Illinois e Califórnia, colocaram testemunhas de prova negativa para dar seu depoimento no intuito de alertar os jurados para o fato de que detetives da vida real nem sempre encontram provas como amostras de DNA ou impressões digitais no local do crime. Entretanto, vários especialistas da área jurídica argumentam que o efeito CSI talvez seja ilusório. O mesmo jornal que citou o advogado Levin de Atlantic City destacou uma declaração do juiz Albert Garofolo, da Suprema Corte. "Minha reação inicial talvez tenha sido sim, existe um efeito CSI. Mas acredito que isso seja mais uma suspeita que qualquer outra coisa. Há uma sensação de que isso talvez seja verdade, mas, na realidade, não consigo me lembrar de uma situação em que o júri esperasse mais do que foi apresentado."

Em 2005, no Wall Street Journal, Simon Cole, do departamento de criminologia, direito e sociedade da Universidade da Califórnia, Irvine, e sua aluna Rachel Dioso escreveram: "Que a televisão tenha impacto sobre os tribunais não é implausível... Mas argumentar que programas como CSI e similares são de fato responsáveis pelo aumento do número de absolvições é exagero. E o mais incrível: conforme a linha de raciocínio forense, não há nenhum traço de evidência que apóie essa idéia. É vasto o campo de pesquisas sobre as decisões tomadas pelo júri, mas nenhuma delas encontrou algo que apoiasse o efeito CSI, só relatos".

O que aparentemente é o primeiro estudo sobre tal efeito foi publicado em fevereiro por Kimberlianne Podlas, advogada e professora assistente de ética e direito na mídia da Universidade da Carolina do Norte, em Greensboro. Podlas concluiu que a probabilidade de ocorrer uma absolvição e o raciocínio para chegar a tal decisão eram os mesmos para o público assíduo de CSI e para candidatos a jurado que não assistem ao programa - ou seja, ela não estabeleceu relação de causa e efeito. Mas vários participantes disseram que a falta de testes forenses era um problema, mesmo nos casos em que a prova física não teria resolvido as acusações hipotéticas. Atualmente pelo menos cinco alunos de pós-graduação (três nos Estados Unidos e dois na Inglaterra) escrevem teses sobre a atuação de júris reais.

Visão Distorcida
Se é difícil comprovar provar a influência do efeito CSI nos jurados, não há dúvida de que a televisão apresenta ao público uma visão distorcida de como a ciência forense é conduzida e o que ela é capaz ou não de realizar. Os atores que interpretam a equipe de investigação, por exemplo, são uma mistura de policial, detetive e cientista forense - esse perfil profissional não existe na vida real. Toda profissão, individualmente, já é complexa o bastante e demanda educação, treinamento e métodos próprios. A especialização dentro dos laboratórios tornou-se uma norma desde o final da década de 80. O cientista forense precisa conhecer os recursos das outras subdisciplinas, mas ninguém é especialista em todas as áreas da investigação criminal.

Além disso, os laboratórios freqüentemente não realizam todos os tipos de análise devido ao custo, insuficiência de recursos ou pouca procura. As séries da TV retratam incorretamente os cientistas forenses como se tivessem tempo sobrando para todos os casos. Os programas mostram diversos detetives, técnicos e cientistas dedicando toda sua atenção a uma investigação. Na realidade, cada cientista recebe vários casos ao mesmo tempo. A maioria dos laboratórios acredita que o acúmulo de trabalho é o maior problema que enfrentam, e boa parte dos pedidos de aumento no orçamento baseia-se na dificuldade que é dar conta de tanto serviço.

Os programas de investigação criminal de ficção não reproduzem corretamente o que ocorre na vida real quando o assunto são as técnicas científicas: Thomas Mauriello, cientista forense da Universidade de Maryland, estima que cerca de 40% do que é mostrado no CSI não existe. Carol Henderson, diretora da Central Nacional de Informação em Ciência, Tecnologia e Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Stetson, disse a uma publicação da instituição que os jurados "às vezes ficam desapontados quando uma das novas tecnologias que eles acreditam que exista não é usada".

Além disso, os investigadores verdadeiros não conseguem ser tão precisos quanto suas contrapartes televisivas. Ao analisar uma amostra desconhecida em um aparelho com telas brilhantes e luzes piscantes, o investigador de um desses seriados pode conseguir uma resposta do tipo "batom da marca Maybelline, cor 42, lote A-439". O mesmo personagem talvez interrogue uma testemunha e declare "sabemos que a vítima estava com você pois identificamos o batom dela no seu colarinho". No mundo real, os resultados quase nunca são tão exatos, e o investigador forense provavelmente não confrontaria diretamente um suspeito. Esse desencontro entre ficção e realidade pode acarretar conseqüências bizarras. Em Knoxville, Tennessee, um policial relatou: "Estou com um homem que teve seu carro roubado. Ele viu uma fibra vermelha no banco traseiro e quer que eu descubra de onde ela veio, em que loja foi comprada e qual cartão de crédito foi usado".
Ferramentas Reais
Apesar de não terem todas as ferramentas que as equipes de CSI têm disponíveis, os cientistas forenses de fato trabalham com tecnologias avançadas que estão se tornando cada vez mais sofisticadas. Os primeiros métodos de exame de DNA no final da década de 80 exigiam amostras do tamanho de uma moeda; os métodos modernos já analisam nanogramas. O noticiário freqüentemente relata um caso antigo que foi solucionado, a exclusão de um suspeito ou uma condenação equivocada, isto é, exemplos de situações que foram revertidas com a ajuda da moderna tecnologia forense. Os bancos de dados de DNA, impressões digitais e munição de armas de fogo tornaram-se recursos importantes que podem ligar criminosos a vários crimes.

Mesmo assim, longe de operar milagres como os da televisão, muitos laboratórios se esforçam para dar conta da crescente demanda que estão enfrentando. À medida que os investigadores de polícia reconhecem as vantagens da ciência e se sentem pressionados a recolher cada vez mais provas, eles apresentam uma quantidade maior de casos para análise. Os detetives que antes coletavam umas cinco provas físicas de uma cena de crime afirmam que agora obtêm de 50 a 400. Em 1989, os laboratórios da Virgínia, por exemplo, analisavam apenas alguns poucos casos. Neste ano já foram apresentados milhares.

Naturalmente, nem todos os itens de uma cena de crime podem ou deveriam ser coletados para testes. A remota possibilidade de um objeto ser importante deveria ser avaliada diante da sobrecarga de casos pendentes. Mas é tanta a pressão social, profissional e política baseada em expectativas infundadas engendradas pela televisão, que se um policial recolher um saco cheio de bitucas de cigarro, embalagens de fast-food e outras coisas inúteis, as chances de esses itens serem programados para análise são grandes.

Além disso, todo esse trabalho terá de ser realizado, em muitos casos, por uma equipe já sobrecarregada. Por exemplo, o estado de Massachusetts tem 6,3 milhões de habitantes fora de Boston e oito analistas de DNA para toda a região (Boston tem três analistas só para a sua jurisdição). A cidade de Nova York abriga 8 milhões de pessoas e 80 analistas de DNA. Mas Massachusetts e Nova York apresentam índices de crimes violentos parecidos (469,4 e 483,3 por 100 mil, respectivamente), aqueles com mais chances de resultar em provas de DNA. Ao que parece, Massachusetts, como muitos outros estados, está com um número insuficiente de funcionários, mas reconheceu o problema e autorizou a contratação de mais analistas forenses de DNA.

Um estudo publicado pela Agência de Estatísticas Jurídicas do Departamento de Justiça revelou que, no final de 2002, mais de meio milhão de casos se acumularam nos laboratórios forenses, apesar de os testes serem concluídos em 90% dos casos ou mais dentro do prazo esperado. Para alcançar a meta de 30 dias para a realização do trabalho naquele ano, o estudo estimou que seriam necessários mais 1.900 funcionários em tempo integral. Outro estudo do Departamento de Justiça demonstrou que os 50 maiores laboratórios forenses receberam mais de 1,2 milhão de pedidos de serviço em 2002: o acúmulo de casos para esses estabelecimentos dobrara dentro do período de um ano. Além disso, esses aumentos vêm ocorrendo apesar de os índices de criminalidade estarem caindo desde 1994.

Outra conseqüência do aumento do número de provas físicas colhidas é a necessidade de guardar tudo isso por um longo período de tempo, de acordo com as leis federais, estaduais e municipais. Entre os desafios de armazenamento de provas está a aquisição de computadores e softwares e contratação de funcionários para o controle do material; equipamento para armazenar com segurança amostras biológicas, como DNA; e espaço em depósito apropriado para provas físicas. Em muitas jurisdições, provas armazenadas por um determinado período de tempo acabam sendo destruídas ou devolvidas. Armazenamento pode ser um problema crucial em casos antigos sem solução - o Projeto Inocência da Faculdade de Direito Benjamin N. Cardozo, em Nova York, descobriu que já não existem mais provas em 75% de suas investigações sobre condenações potencialmente equivocadas.

Estudo de 2003 realizado pela Sociedade Americana de Diretores de Laboratórios Criminais indicava que mais de um quarto dos laboratórios forenses dos Estados Unidos não tinham os computadores necessários para o controle das provas. Mark Dale, diretor do Instituto Regional Forense do Nordeste da Universidade de Albany e ex-diretor do Laboratório do Departamento de Polícia de Nova York, estima que 10 mil cientistas forenses a mais serão necessários na próxima década para dar conta dessa quantidade de casos. Além disso, a modernização adequada das instalações custará US$ 1,3 bilhão, e novas ferramentas exigirão um investimento superior a US$ 285 milhões.
Impacto nas Universidades
O lado bom disso tudo é que o público desenvolveu fascinação e respeito, pela ciência algo sem precedentes desde o programa espacial Apollo. As inscrições em cursos de ciência forense vêm aumentando assustadoramente nos Estados Unidos. O programa da Universidade Chaminade de Honolulu, por exemplo, passou de 15 alunos para cem em quatro anos. Na minha instituição, a Universidade da Virgínia Ocidental, o curso de ciência forense e investigativa, que em 2000 tinha quatro alunos, atualmente é o terceiro maior do campus, com mais de 500 alunos inscritos.

O crescimento de cursos que já existem e o surgimento de novos ganharam proporções tão grandes que o Instituto Nacional de Justiça e a Universidade da Virgínia Ocidental elaboraram um guia de formação e treinamento para laboratórios, instituições educacionais e alunos de ciência forense. O relatório foi usado como base para a formação de uma comissão certificadora sob a responsabilidade da Academia Americana de Ciências Forenses. Com isso, até janeiro, 11 programas já receberam certificação provisória, condicional ou total.

Mas a melhor conseqüência do interesse público pela ciência forense costuma ser o aumento de investimentos no campo da pesquisa. No passado, a maioria das pesquisas era realizada em laboratórios policiais que trabalhavam com problemas específicos, associados diretamente a casos. Mas para que as tecnologias se desenvolvessem acentuadamente, os testes precisavam ocorrer em ambiente controlado como o de laboratório acadêmico. Tais laboratórios poderiam examinar problemas que sem dúvida exigem mais pesquisas. Por exemplo, entre os desafios jurídicos atuais está o questionamento da antiga hipótese sobre a singularidade das comparações de impressões digitais, marcas de arma branca e de mordidas, estriamentos de balas e caligrafias.

À medida que cresce a confiança na ciência forense, é preciso que ela a mereça de fato: relatório recente do Instituto Nacional de Justiça do Congresso declarou que é necessária a realização de pesquisas sobre a base científica de provas de impressão, como marcas de pneu e pegadas; de padrões para a autenticação de documentos; e das análises de armas de fogo e de marcas de arma branca. O relatório recomenda que o governo federal apóie pesquisas para formalizar disciplinas de ciência forense, princípios básicos de abordagem, taxas de erro e procedimentos-padrão. Sem dúvida, mais recursos financeiros para esse tipo de pesquisa seriam benéficos: não há como não se perguntar por que os Estados Unidos investiram apenas US$ 7 milhões neste ano fiscal no Instituto Nacional de Justiça para pesquisas básicas em ciência forense, enquanto o Instituto Nacional de Saúde gastou US$ 123 milhões em medicina alternativa.

Uma das obrigações mais importantes de qualquer governo democrático para com seus cidadãos é garantir segurança pública com justiça. A ciência forense é parte integrante e primordial do processo de justiça criminal. No século XXI, laboratórios forenses bem equipados, comandados por equipes bem treinadas e em quantidade adequada são essenciais para o cumprimento dessa obrigação. A popularidade da ciência forense está no ápice, assim como o questionamento de seus métodos e potencialidades. Mesmo que não exista um efeito CSI nos tribunais, o verdadeiro efeito é a conscientização da necessidade de criar e aprimorar laboratórios criminais e pesquisas na área.

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